Alma Minha

Escritos e "guardados" que refletem um tempo, uma época, uma alma.

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Local: São Paulo, São Paulo, Brazil

16 agosto 2006

MENINA-MOÇA

Estava só. Todas as luzes da casa lhe faziam companhia naquela noite escura. Escura e vazia como todas as noites. Noites de televisão, de discos, de jornais, de andanças do quarto à sala, à cozinha, ao banheiro. Noite de andanças pelos idos tempos de infância, pelos vindos tempos que tinha à frente e que fazia questão de sonhá-los o mais fictícios possíveis. Sonhos embalados pela fria brisa que entrava pela janela. Desfeitos com o olhar para o relógio que dizia ser tarde, hora de dormir o sono que não tinha, o sono que não vinha. Hora de sonhar um pouco mais, desta vez mais só, sem luzes, no escuro quarto, sem brisa a embalar os sonhos de menina-moça, mais moça que menina, mais mulher que criança. Em seu quarto vazio e escuro, os sonhos não conseguiam ser claros, alegres ou bonitos. Cheiravam vela, vestiam-se de velório. Não eram sonhos. Eram pesados que a embalavam até que chegasse o leve torpor, prenúncio do sono que viria. Amanhece. Seu rosto com fundas olheiras encara-se no espelho. A branca espuma da pasta de dentes faz festa em sua boca. O leite, medido na xícara, quase foge da panela. Para que fazer um bule de café para uma pessoa só? Melhor o café solúvel. É só uma colherinha. Hoje é sábado. Hoje a andança se amplia ao supermercado, à padaria, à banca de jornal. Seus olhos pulam da TV e pregam-se no telefone, que está mundo há tanto tempo (mentira. Tocou outro dia mesmo, era engano!). Todos os amigos faltam-lhe agora. E agora ela precisa deles. Nada tem a dizer. Dizer do quê? Do vazio, do nada? De seus dias infinitamente iguais? De suas noites infinitamente vazias? Já não eram mais sonhos. Eram pensamentos que deixavam de ser sonhos por serem extremamente reais. Pensava sobre ela mesma, sobre seus amigos, sobre o tempo que passava, sobre o vazio que a rodeava. Queria que a casa estivesse cheia de amigos como antes era. Queria ouvir conversas, assuntos, problemas. Não tinha nada a falar. Bastava-lhe ouvir. Não queria ser só. Não queria estar só. Tudo isso e muito mais passava pela cabecinha da menina-moça, mais moça que menina. Nesta noite ela não acendeu as luzes, não ligou a TV, não leu os jornais, não ouviu os discos, não esperou o telefonema que não viria. Apenas deitou-se em sua cama, vazia, e, só, chorou todas as lágrimas de menina até que o dia a despertou.
Os olhos que a olhavam no espelho eram de mulher.

Set/out/77