Alma Minha

Escritos e "guardados" que refletem um tempo, uma época, uma alma.

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Local: São Paulo, São Paulo, Brazil

16 agosto 2006

MENINA-MOÇA

Estava só. Todas as luzes da casa lhe faziam companhia naquela noite escura. Escura e vazia como todas as noites. Noites de televisão, de discos, de jornais, de andanças do quarto à sala, à cozinha, ao banheiro. Noite de andanças pelos idos tempos de infância, pelos vindos tempos que tinha à frente e que fazia questão de sonhá-los o mais fictícios possíveis. Sonhos embalados pela fria brisa que entrava pela janela. Desfeitos com o olhar para o relógio que dizia ser tarde, hora de dormir o sono que não tinha, o sono que não vinha. Hora de sonhar um pouco mais, desta vez mais só, sem luzes, no escuro quarto, sem brisa a embalar os sonhos de menina-moça, mais moça que menina, mais mulher que criança. Em seu quarto vazio e escuro, os sonhos não conseguiam ser claros, alegres ou bonitos. Cheiravam vela, vestiam-se de velório. Não eram sonhos. Eram pesados que a embalavam até que chegasse o leve torpor, prenúncio do sono que viria. Amanhece. Seu rosto com fundas olheiras encara-se no espelho. A branca espuma da pasta de dentes faz festa em sua boca. O leite, medido na xícara, quase foge da panela. Para que fazer um bule de café para uma pessoa só? Melhor o café solúvel. É só uma colherinha. Hoje é sábado. Hoje a andança se amplia ao supermercado, à padaria, à banca de jornal. Seus olhos pulam da TV e pregam-se no telefone, que está mundo há tanto tempo (mentira. Tocou outro dia mesmo, era engano!). Todos os amigos faltam-lhe agora. E agora ela precisa deles. Nada tem a dizer. Dizer do quê? Do vazio, do nada? De seus dias infinitamente iguais? De suas noites infinitamente vazias? Já não eram mais sonhos. Eram pensamentos que deixavam de ser sonhos por serem extremamente reais. Pensava sobre ela mesma, sobre seus amigos, sobre o tempo que passava, sobre o vazio que a rodeava. Queria que a casa estivesse cheia de amigos como antes era. Queria ouvir conversas, assuntos, problemas. Não tinha nada a falar. Bastava-lhe ouvir. Não queria ser só. Não queria estar só. Tudo isso e muito mais passava pela cabecinha da menina-moça, mais moça que menina. Nesta noite ela não acendeu as luzes, não ligou a TV, não leu os jornais, não ouviu os discos, não esperou o telefonema que não viria. Apenas deitou-se em sua cama, vazia, e, só, chorou todas as lágrimas de menina até que o dia a despertou.
Os olhos que a olhavam no espelho eram de mulher.

Set/out/77

Na transparência da noite sem lua,
Ela corria de encontro ao silêncio,
Muda,
Surda,
Cega.
Tinha todos os sentidos
Voltados para a busca do infinito,
Não para ver Deus,
Mas para olhar os homens,
Lá de cima,
E era difícil,
Muito difícil.
Seu papel era apenas
Mulher.
A ela, várias portas se fechavam,
Com estrondo,
Com estrépito
Ou então
Silenciosamente,
Furtivamente,
Às suas costas.
Seu silêncio,
Gelado,
Imóvel,
Imutável,
Trazia ares de noite
Transparente,
Negra,
Suspensa.
Seu olhar que não olhava
Para lado nenhum,
Para ninguém,
Para todos ao mesmo tempo
A transformava
Em figura sombria,
Fugidia,
Espectral.
Nada havia no mundo
Que mais quisesse,
Que olhar o próprio mundo,
Lá de cima,
Para avaliar
A verdadeira extensão
De seu mutismo,
De seu silêncio,
De sua solidão.
Ver, de uma vez por todas,
Os homens a se digladiar,
Uns com os outros,
Por um pedaço de pão,
De terra,
Por dinheiro,
Objetos,
Mulheres.
E tudo isto se escondendo
Por trás de virtudes,
Como sobrevivência,
Coragem,
Subsistência,
Privacidade,
Amor.
E tudo isto não passando,
Apenas,
De covardia,
Mesquinhez,
Egoísmo,
Cobiça,
E ódio.
Queria ela ver,
Por sobre todas as nuvens,
Terras,
Águas,
Os homens todos,
Reunidos,
E sendo, ainda,
Solitários.
Mesmo com todos os pães,
Terras,
Dinheiro,
Objetos
E mulheres
Do mundo.
Nada haveria de lhes cobrir
Aquela solidão
Que a alma sente.
A solidão do estômago,
Do ego,
Das facilidades,
Do supérfluo,
Do corpo.
Tudo estaria perfeitamente arranjado.

Mas quem irá grudar
O adesivo na alma?
Seria bom ver de cima
E olhar cá pra baixo
Os homens imersos em seus
Pequenos mundos,
Recheados de falsidades,
E egoísmo.

Só então ela poderia compreender
O porquê de toda esta angústia,
De todos estes pontos de interrogação,
Que crivam a vida impiedosamente,
De toda esta sensação de mal-estar,
Presente no ar poluído do dia-a-dia,
De todos os sorrisos falsos
Que turvam os caminhos.

Na transparência da noite
Ela corre em busca
Do significado mais fundo
De existir.

19/07/78

14 agosto 2006

ELEGIA A UM TEMPO PRESENTE

O que de mais importante
existe, neste tempo presente,
que o verbo ser?
Entre tantas coisas,
belas,
algumas,
outras
sem nexo,
agressivas
aquelas.
No tempo presente,
entre tudo isto
e mais um pouco,
nada se iguala
à importância de
ser.
Apenas.
Sem grande alcance,
maiores devaneios,
profundas reflexões,
pensamentos ou ações.
Importante de verdade,
além de toda a compreensão,
é ser.

Sou pedaço de mata,
Folha seca,
Rio e cascata.
Árvore frondosa,
Chorão imenso,
Espinhos e rosa.
Pedra colorida,
Flor de campo,
Pétala de orquídea.
Cipó entrelaçado,
Galho retorcido,
Lago espelhado.

És a brisa da noite
Que vem agitar o meu sono,
O por do sol brilhante
Que traz a chuva e frio,
A música doce
Que embala pesadelos,
O passo em silêncio
Que o eco responde,
A mão suave
Que queima a alma,
O olhar sereno
Que fere os sonhos.

É uma dádiva poder ser
Apenas aquilo que se é.

Somos máquinas
Caminhando sobre máquinas,
Ferindo,
Agredindo,
Matando.
Acima de tudo violentando
Sonhos,
Ideais,
Objetivos,
A própria vida.

Sois, então, a resposta.

São tantas as palavras
Que nada mais resta a dizer.
Sinta-as em sua alma:
Viver é aprender a ser.

23/02/78
23:28h

Desceu a noite.
Com seu véu de mistério,
Com sua sombra de sono,
Com seu ar de repouso.

E a noite desceu,
Trazendo o mistério,
O sono,
O repouso.

E veio embalar em seu regaço,
A calma,
A paz,
O amor.

Vieram os homens.
Sem véus a lhes cobrir o rosto,
Sem sombra de sono,
Sem repouso no olhar.

E os homens vieram,
Levando o mistério,
O sono,
O repouso.

E vieram embalar em suas mãos,
A agitação,
A guerra,
O ódio.

Chegaram as mulheres.
E o sol espalhando luz pela terra,
Veio descobri-las.
E a aurora,
Vestida de dourado,
Veio saudá-las.
E as flores se abriram
Para sorver-lhes o perfume.
E os pássaros entoavam
Deliciosas melodias
Ao vê-las passar.

E homem e mulher
Se encontraram.
Dois frutos distintos
Da mesma Natureza.

E homem e mulher,
Juntos,
Saudaram o sol,
A luz,
A aurora,
As flores,
O perfume,
Os pássaros,
As melodias,
E o homem,
E a mulher.

E a mulher,
Tomando das mãos
Do homem,
A agitação,
Embalou-a
E fê-la adormecer.
E novamente,
Tomando das mãos dele
A guerra,
Deu-lhe palmadas,
E fê-la
Quieta,
Encostar-se a um canto.
E pela última vez,
Tomando-lhe o ódio,
Encarou-o,
E deu-lhe flores
Para que pudesse,
Sorrindo,
Amá-las.

E o homem,
De mãos vazias ficou.
E encarou a mulher.

No horizonte
Infinito,
O sol se punha,
Avermelhando
O céu,
A terra,
O mar,
O rio,
O lago.

E seus últimos raios,
Cor de sangue,
Vieram despedir-se
Da mulher,
E do homem.
E as flores se fecharam.
E os pássaros se calaram.

Mas o homem,
E a mulher,
Ainda se encaram.

E novamente desceu a noite.
Generosa.
E ao homem e à mulher,
Encheu-lhes as almas
De mistério.
Cobriu-lhes os olhos de sono,
E impregnou-lhes o corpo de repouso.

E a noite depositou
Nos braços da mulher,
A calma,
A paz,
O amor.

E o homem se aproximou
De mãos vazias.
E a mulher estendeu-lhe
As mãos cheias.

.........................

E o dia amanheceu
Com cor de pecado

13/02/75

04 agosto 2006

QUATRO PATAMARES

I

No silêncio de uma manhã, clara e bonita, em que nem o murmúrio do vento se fazia ouvir.
Numa manhã, qual primavera, que num bocejo se abre, depois de um triste inverno.
Numa manhã radiante de sol, com seus raios que calam fundo na terra germinando a semente, crescendo a árvore, fecundando o solo, dando o fruto, sendo amor divino.
Nesta manhã clara de primavera e sol, nesta manhã te vi; longe, bem antes do por do sol.

II

E com o sol a pino, em pleno meio-dia, caminhei mais depressa, sem me importar com o vento que balançava as copas das árvores.
Caminhei mais depressa, sem me importar com o verão que fazia, qual castigo que se dá á bela harmonia de uma primavera.
Caminhei mais depressa, sem me importar com o sol implacável que, transpondo a terra seca a semente, mingua a árvore, mata a flor, estraçalha o fruto, sendo ódio inclemente.
Caminhei mais depressa, sem me importar com o vento e com o sol do verão; caminhei mais depressa para chegar onde estavas.

III

E numa tarde fresca de outono, em que o vento derrubava folhas secas pelo caminho.
Nesta tarde de outono, calma e cinzenta, como o homem já maduro, que viveu e quer descansar.
Nesta tarde de outono, em que o sol por trás das nuvens as enfurecia e as fazia chorar.
Nesta tarde de outono, eu, cansada de correr e brincar, cansada de procurar e não te ver, cansada de te chamar e não te ouvir, matei meu cansaço com a força de teus braços, minha sede com a luz de teus olhos, minha fome com o som de tua voz.

IV

Nesta noite fria de inverno, em que o vento violento geme e range nas dobradiças.
Nesta noite escura qual breu, em que o homem encontra o seu descanso.
Nesta noite, uma luz não prateia o céu; somente uma estrela espreita a solidão.
Nesta noite de inverno, fria e escura, só, infinitamente só, lembro que estou cansada, que tenho fome e sede, e, no entanto, sei que estou só e morrerei antes de um novo sol raiar.
Lembro de teus braços, tua voz, teus olhos, e sinto vontade de chorar. E choro ao lembrar quando teus braços me soltaram, quando teus olhos fecharam; mas tua voz não emudeceu. Ela restou para me dizer adeus. E esses mesmos olhos que te viram, te encontraram e beberam de tua luz, agora te vêm seguindo o teu caminho. Vais sozinho. E eu caminho só, sem ter você.
As lágrimas me impedem de ver a estrela, pequenina, no vácuo, tão só quanto eu.
E antes da noite chegar, antes da tarde findar, bem ao por do sol, eu descobri o quanto te amo.

02/11/72

E a chuva vem caindo
Bem devagar.
E gota a gota,
Segundo a segundo,
Pesa em meu coração.
Instala-se,
Gelada,
Fria,
Dura.
E não me deixa chorar.
E a vontade
De gritar,
De xingar,
De correr,
De chamar.
O céu fecha pesado,
Lançando sombra
Sobre mim.
E o andar desesperado,
De quem caminha
Caminhos sem fim.
E meu coração
Molhado,
Gelado,
Frio,
Duro,
Anseia encontrar o teu,
Aberto,
Amplo,
Quente,
Que vai me dar
Força,
Sossego,
Calma
Segurança.
E minha rima não vem.
Rimo então:
Eu.
Você.
E o que acontece agora?
Eu fico com minhas rimas,
Você fica com teus horários
E tuas dores de estômago.
Fico eu cá na chuva,
Em busca do sol,
Até que a noite me leve,
Pra casa.
Até que a noite venha
E diga:
Vamos, é hora.
E vou-me embora,
Com minha companheira.
E minhas rimas perdem-se no papel:

Eu.

Amor.

Você.

Adeus.

24/03/75

DESESPERO

Finda o dia
E ainda
Não é chegada
A noite.
A noite com seu calor
Que vem embalar
Meu corpo
E traz o sono
A esta alma cansada.
Mas o que há?
Não cai a noite?
Onde estão as estrelas
Com seu brilho baço?
Onde está a lua
Que ainda
Não acendeu
A vastidão do céu?
Cai enfim a noite.
Não há luá
Ou estrelas
Ou a própria noite.
É escura minha alma.

22/03/77

ESPERANÇA

Pela janela aberta
Entra o sol.
Com ele,
O som.
Mais um pouco,
O cheiro de orvalho
Invade o amplo quarto.
E uma florzinha amarela,
Ínfima florzinha,
Míseras quatro pétalas,
Entra pela janela,
E cai num gracioso bailado,
Sobre o chão de madeira,
De maneira sensível e visível,
Palpável e fragrante.
E o quarto adquire
Um novo tom.
Cor de orvalho,
De flor,
De sol.
Enche-se de som
E de manhã.

23/03/77

03 agosto 2006

LUCIANA

Sua mãozinha pequena, tão cheia de graça, seu rosto grande, seus olhinhos rasgados e miúdos, seu cabelo – curtinho – eu amo você.

De longe, uma boneca; de perto, um anjo. Sua graça, sem brilho, sem esplendor, mas cheia de encanto, de mistério. E você, com toda sua ingenuidade e amor, com todo o seu jeitinho de olhar, de andar, de falar, com todo o seu carinho, eu amo você.

Sem preconceitos, sem religião, sem raças, sem pai, mãe e irmãos, despida de todos os tais encantos, só, no deserto, eu ainda amo você. Apenas você, que no meu caminho passou; apenas você, que somente passou. Não deixou suas marcas em meu corpo. Suas marcas calaram em minha alma. Sua foto, de beca, sua imagem, lá longe, tão longe, distante, seus olhos amendoados, procuravam alguém na escuridão. Seus olhos não encontraram um par de olhos que correspondesse ao seu olhar angustiado e cheio de medo. E duas lágrimas, quais pequenos rebentos, rolaram pela sua face morena de jambo. E eu também chorei. Seus olhos agora estão lívidos e estão longe; aonde, não sei. Seu olhar se ilumina e encontra não sei o quê, tão longe na sua própria imaginação. E de seus lábios, um sorriso, como uma flor, desabrocha, lindo, puro, e eu também sorria. E seus olhos encontraram os meus, sem angústia, sem desespero, sem medo. E eu sorria. Sua mãozinha tímida estendeu-se, mas você não veio. E eu sorri, você sorria. Sem uma palavra sua mão ficou suspensa no ar. Pareceu-me ouvir de seus lábios um “adeus”. Não, não foi um adeus. Foi um “até logo”. Não, também não foi. E no meio de seu sorriso, de seus olhinhos miúdos, de sua mãozinha esticada, pareceu-me divisar um “tchau”. E você sorria. Um sorriso puro, um sorriso-ternura, um sorriso-carinho, um sorriso-amor. E eu chorei. Enquanto você sorria, eu chorei. E eu apenas amei você, Luciana.

“Escrito” para Luciana, menina de cerca de seis anos, portadora de Síndrome de Down, que mostrou para mim (na época uma pré-adolescente) todo o carinho que pode existir na alma de um ser humano. Não tenho a data desta “escrito”. E a beca se refere à formatura dela no prezinho.

Entre tantos contratempos
Resta o tempo de tecer
Tapetes.

Entre tímpanos, cornetas
Tocam altas e bom tom,
Trombetas.

Entre tábuas e tapumes
Passam timidamente
Sonetos.

Entre tantas solitárias
As réstias entre frestas
Sonatas.

Entre tantos contratempos
Resta um tempo de dizer
Palavras.

Entre tudo, as palavras
Nas mais loucas sucessões
Descobrem.

Tantos a dizer palavras
Sem sentido, sem final,
Inúteis.

Contratempos que se fazem
Com palavras, por dizer,
Somente.

Resta sempre a alternativa
De palavras musicais
Florindo.

O olhar com mil palavras
O dizer não querendo,
Amando.

Tempo de olhar o sol, o céu
De ver o mar, palavras
Fluindo;

De encarar o tempo, hoje,
Erguido com palavras,
Vazio.

Tecer com fios de palavras
Uma colcha de crochê.
Retalhos.

Tapetes de palavras,
Finas, excelentes,
Cobertas.

Entre tantas palavras,
Aquelas há, que ferem
Profundas.

Tímpanos soando alto,
Fortes palavras secas,
Valentes;

Cornetas bem ritmadas,
Lançam longe, palavras
Cansadas.

Tocam palavra sonoras,
Agridoces, bonitas,
Sentidas;

Altas e longe disparam.
Palavras, sons e queixas
Retornam.

E em volta de palavras
Sussurros escondem-se
Calados.

Bom começo de conversa
É sempre uma palavra
Sincera.

Tom de voz é importante
Dando cor às palavras
Primeiras.

Trombetas finalizando
Concerto de palavras
Sonoras.

Entre tantas outras coisas
De valor, as palavras
Superam.

Tábuas soltas ou pregadas
Em vigas de palavras
Sustentam.

E não teimam em despencar
Ao vendaval de palavras,
Tormentas.

Tapumes que, protegendo
Palavras, de olhares
Sedentos.

Passam palavras por bocas,
Que as transformam, engolem
Verdades

Timidamente, palavras
São ditas, encontradas,
Vagando.

Sonetos com rimas ricas,
Palavra por palavra:
Carinho.

Entre infinitas palavras
Descobrem os caminhos
Humanos.

Tantas vezes um gesto
Não compara palavras
Faladas.

Solitárias nas janelas
Aguardando palavras
Cantadas;

As palavras permanecem
Na memória do tempo:
Lembrança.

Réstias de luz num escuro
Momento de palavras:
Saudade.

Entre tanta coisa dita
Resta palavra que conta
Passado.

Frestas falsas, construídas
Por onde muitas palavras
Escapam.

Sonatas em forma de flor
Comentam as palavras
Cantando.

Entre tudo o que foi dito
Palavras que deixaram
Escrito

Tantos conceitos, dizeres,
Palavras importantes,
Completas.

Contratempos contrapondo
Palavras, pensamentos
Contrários.

Resta dizer, fazer, contar,
Palavras acrobatas,
Múltiplas.

Um pouco de tudo, nada.
Palavras que se tornam
Imensas.

Tempo de subir bem alto
Palavras funcionando
Escadas.

De tanto falar de tudo
Palavras escapando,
Faltando.

Dizer de coisas, de flores,
Palavras ofertando
Presentes.

Palavras que murmuradas
Mais que presentes: tudo.
Palavras de amor.

31/03/77
0:12h

02 agosto 2006

Achei a primeira parte. Vamos lá:

Um pássaro de metal
Que desce do céu
E suavemente toca a terra
Numa ensolarada manhã de segunda-feira,
Num dia de outono,
Prenúncio de inverno.
Traz em seu bojo
Lembranças que não serão
Esquecidas.
Histórias há tanto tempo
Ditas
E repetidas
E tão melancolicamente
Lembradas
Nas noites escuras de
Inverno
E chuva.
Desce o presente,
Que mais que material
É espiritual
E cheio de encantos
E mistérios
E surpresas.
Como é bom sentir
Na alma
O sorriso de gente
Da terra.
Como é bom saber
Que existem
Tantas almas
Tantas gentes
Tantas coisas
Parecidas
Com aquilo que vivemos
E vivenciamos
Em sonhos,
Nos acalantos da noite,
Nos embalos do verão,
No caminhar de estradas,
No rever velhas fotos,
No beber da cerveja.

Quanta coisa bonita
Aprendemos
Desde o berço;
Quanta coisa ouvimos
Ainda quando nem mesmo
Sabíamos falar;
Quanta coisa trazemos no sangue
E na alma
Que nem mesmo saberíamos contar
Ou dizer
Ou falar.
Sabemos, sim,
Sentir.
O que importa que aqui,
Agora,
Seja noite,
E que lá,
No ponto de partida,
O sol se ponha
Avermelhando os trigais,
Dourando as estepes,
Fazendo reverberar
O mar.
Que importa a distância,
Medida em quilômetros,
E encurtada pelas cartas,
E menos ainda,
Pelo telefone.
Que importa a ausência de notícias,
Quando o mais importante
É descobrir que o ponto de partida
Existe.
Que ele não pode ser demarcado,
Identificado,
Analisado,
Medido,
Referenciado.
Que sua existência é paradoxal
À própria ausência.
Que há o ponto de partida,
Escondido,
Incubado,
Oculto,
Camuflado.
Que sua essência,
Tão bela como a própria Natureza liberta
E ao mesmo tempo tão perigosa
Como o fogo que destrói a própria Natureza,
Está em cada um de nós.
O que é verdadeiramente importante,
É sentir a presença do ponto de partida.
Seja aqui, sentindo a fria brisa da noite.
Seja lá, recebendo no rosto,
Os últimos raios do sol poente.
O que é fundamental
É descobrir no nosso ponto de partida,
A origem,
A verdade maior.
É descobrir a forma
De ultrapassar barreiras,
De ultrapassar
O Tempo
E o Espaço.
De ignorar ideologias partidárias,
De anular convicções religiosas,
De cancelar idiomas estranhos,
Para se descobrir no outro,
No próximo,
No amigo,
O irmão.
O irmão de origem,
O irmão da mesma mãe,
E do mesmo pai.
O irmão que de mãos vazias
Chega.
O irmão que traz no olhar
Todo o sofrimento
De lutas que não são mais suas.
Não por não querê-las,
Mas por não sabê-las.
Não por não assumi-las,
Mas porque não lhe é dado o
Direito
De enfrentá-las.
Não por serem suas,
Mas de seu passado,
De sua terra,
De sua gente.
É maravilho descobrir
No irmão,
O mesmo que somos nós.
É maravilhoso saber
Que existem mais,
Muitos mais
Pontos de partida

28/05/79
19:50h

.
.
.
.
.

A emoção da chegada.
O orgulho de mostrar no corpo
Não uma oposição política,
Mas uma situação da alma.
O orgulho de ostentar no rosto
O sorriso de alegria.
O orgulho de trazer no olhar
A ansiedade da espera.
O orgulho de trazer nas mãos
As boas vindas.
A garra de aceitar
E enfrentar
Depois.
Como é bom se sentir,
De repete,
Na terra da gente,
Como que chamando
à Pátria.
Como foi bom ouvir
O idioma que não é o nosso
Mas que é o que compreendemos.
Como foi maravilhosa
A sensação
Da descoberta.
Como foi sensacional
Empunhar a bandeira
Invisível,
Imperceptível,
Onde estava hasteada
A alma.
Indescritível a emoção
De descobrir o sol
Iluminando
Lá e Aqui
Ao mesmo tempo.
Impossível esconder
As lágrimas.
Incrível apertar contra o peito
Um pedaço da gente
Um pedaço de quem
Nem ouvimos falar
E que, no entanto,
Nos estende a mão,
Nos olha,
Nos sorri,
Não nos fala nada.
E, no entanto,
Estabelece o elo
Que finda a procura,
Firma o pacto
Do próprio encontro de si.
Inimaginável se furtar
Ao aperto de mão.
O ver se afastar devagar.
A promessa de, apenas,
Um até breve.

O atraso,
O teatro lotado,
A distância de ver,
A proximidade de sentir,
O aperto na alma
A cada voz ouvida,
A cada passo dado,
A cada nota emitida.
A alegria de,
Na madrugada,
Cumprimentar as pessoas,
Mesmo com a revolta latente
De ouvir,
Entre tantos hinos
À beleza,
À alegria,
À pureza,
À terra,
Ao ideal,
À Pátria,
Um hino de tristeza.
A emoção de sentir,
Não apenas a nossa revolta.
As palavras fugidas,
Os gestos escondidos,
O movimento discreto,
De um presente que troca
De mãos.A alegria de se saber
Também sentida,
Notada,
Não pelas palavras mal faladas,
Mas pelo sentimento
Que as próprias palavras
Traziam.

Um almoço corrido
E concorrido.
Onde entre tanta coisa,
O que menos houve
Foi o próprio almoço
As surpresas se seguindo
Uma após a outra.
As descobertas dos dois lados.
As diferenças entre os dois hemisférios.
As preocupações com perguntas
Indiscretas,
Que nada de novo poderia trazer.
As não-perguntas
Que muito de novidade
Mostraram.
O disfarçar diante de um quadro
E outro.
As confidências,
Paralelas,
E paradoxais.
O voltar no meio da festa
E deixar para trás
Muita coisa importante
Vista e ouvida
De longe, apenas.
Uma canção vibrante,
Cheia de campo.
Uma música triste,
Cheia de terra.
Um desenho na parede,
Cheio de lembrança.
Tantas lembranças,
Quanto nossas próprias lembranças
Tão vividas
Quanto as nossas mesmas.
O perceber de algo no ar.
Algo de pesado
Como uma negra nuvem,
Envolvente,
De fumaça.

O silêncio de uma noite em casa,
Quebrado por notícias
E notícias

29.05.79
20:05h

Este é um poema antigo (ui...), um dos meus muitos "guardados". Na verdade o que localizei ainda é do tempo da lauda e da máquina de "tipo pequeno". Começa na lauda 5. Acho que há laudas anteriores. Vou procurar. Mas essa é uma história que marcou indelevelmente minha vida e minha alma.

01 agosto 2006

Estou inaugurando o meu blog. E como o próprio nome diz - Alma Minha - é um espaço para registrar minha alma. E anseios, dúvidas e certezas, alegrias e tristezas, desabafos...

Quando comentei aqui no trabalho que estava inaugurando "o meu" blog, a pergunta primeira e imediata foi: "o que você pretende com ele?". Pois é exatamente isso que pretendo com ele: transformá-lo em Alma Minha, minha alma. As coisas que não digo, escrevo.

Se por acaso alguém se interessar em ler o que vou registrando aqui, que fique bem informado: é minha alma que está aqui. Lavada e enxaguada. Pretendo recuperar meus textos antigos, penso em guardar/expor aqui minhas cartas de editor (talvez até trabalhá-las com mais porquês, desnudá-las, quem sabe, e assim desnudar também minha alma).

Já que estamos inaugurando este espaço, gostaria imensamente de dedicar este momento ao meu pai, à sua memória, às suas histórias, à sua lembrança, aos seus ensinamentos, à fibra e à garra que norteou (e norteia) meu caminhar. Quando ele morreu, enviei um texto (feito de alma) para o Estadão. Que acabou sendo publicado. Também fiz um texto que passei para todos os coleguinhas aqui do trabalho. Foram momentos carregadíssimos de emoção para mim. Mais do que perder o pai, o ser humano que estava sofrendo, já incapacitado para a vida, que acabou se tornando um descanso mesmo, foi a perda do referencial. Nem tanto o do momento atual, mas o "conjunto da obra".

A lembrança mais contundente que tenho de meu pai é, na verdade, uma lembrança escrita. Que quero partilhar aqui, com minha alma. Antes, uma pequena localização espaço-temporal (quem me conhece sabe, bem, da minha capacidade de "contadora de histórias"). Meu pai, ucraniano, filho de roceiros, aos 14 anos de idade foi capturado pelos alemães no início da II Guerra e levado a um campo de refugiados. Ao final da Guerra, com a chegada dos Aliados, a opção de embarcar em um de dois navios: um que ia para a América do Sul - Brasil e Argentina - e outro para a América do Norte - Estados Unidos e Canadá. Meu pai, pouco mais que um adolescente (pela idade) e bem adulto (pela vivência), registrou todas estas questões num caderninho, num diário, a versão ancestral do blog. E descobri, já casada e mãe, no meio dos "guardados", o caderninho. Que começava com a seguinte frase: "abandonei tudo, tudo, na pátria-mãe e me aventurei pelo estrangeiro". Daí em diante vinha sua história, suas dúvidas: "em que navio embarcar?", "que fila pegar? a da direita ou a da esquerda?". Acho que ele pegou a fila certa.

Por isso, em homenagem ao primeiro "blog" que conheci, em homenagem ao meu referencial de vida e alma, em homenagem ao meu papai - Stefan Samila - Alma Minha!